quarta-feira, 11 de março de 2020

#passaapalavra: António Daniel é professor de Filosofia. Autor do blogue Filosofia na Madeira Torres. Um fafense de corpo e alma.



JORNALdeFAFE: habilitações literárias e profissionais... escolas onde lecionou...
António Daniel: Antes de mais deixem-me dizer-vos que esta iniciativa é uma pedrada no charco. É uma óptima ideia e é uma forma de dar voz a quem nunca teve nos fabulosos jornais que temos em Fafe, jornais muito paroquiais.
Licenciai-me me Filosofia em 92 e fiz o mestrado em Cultura Portuguesa em 2000. Lecionei em Barcelos, Fafe, Mirandela, Aljustrel, Lourinhã, Mafra e Torres Vedras. Promovo formação no Centro de formação de Torres Vedras. E por aqui fiquei.

JORNALdeFAFE: Há quantos anos saiu de Fafe? O que representa esta cidade para si?
António Daniel: Saí de Fafe há alguns anos. Há cerca de 30. Inicialmente, prolonguei o meu vínculo de fim de semana, posteriormente tornei-me visitante esporádico até que cortei com o cordão umbilical há cerca de 5 anos. Daí para cá, vou acompanhando pelas redes sociais o que na minha terra se tem feito. Por vezes assisto às reuniões do executivo pelos meios existentes. Não perco é um resultado da desportiva e fico francamente aborrecido quando empata ou perde.
A segunda questão é de difícil resposta. A representação é sempre uma construção e a forma como construímos depende da idade e do contexto. Sempre gostei de Fafe, dos seus recantos, das suas ruas e da minha de forma particular. Apesar de ter vivido em três ruas, uma teve particular importância: a Travessa da Rua do Maia. Foi lá que vivi toda a minha infância. As primeiras quedas de bicicleta, os primeiros arranhões a subir árvores. Era o meu mundo.
Entretanto, entre os vinte os os 30 e tal, pensamos em tudo menos no significado da vida. Até que aos 40, recuperamos a memória, sentindo a necessidade de voltarmos de onde partirmos. Por isso, os anos passam mais rápido porque começamos a perceber o que é realmente isto tudo. Percebemos o afeto, a dimensão do carinho, o calor do ventre, a mundividência dos rostos dos nossos velhotes. Tudo isso é irrecuperável. O cheiro da vitela atenua a angústia da presença ausente.

JORNALdeFAFE: Como se vê Fafe à distância?
António Daniel: É-me difícil responder a essa questão. Parece sempre que lá estou. Quando percorro uma rua qualquer, comparo-a sempre às nossa ruas. Contudo, Fafe não é diferente de todas as outras terras. A única diferença é que é a nossa terra. Tem uma boa situação geográfica, boa estrutura viária, mas ganha-se muito mal. Fafe é uma óptima terra para quem tenha um salário mediano ou alto. Facilmente nos conduzimos a Braga ou ao Porto. Para quem ganhe pouco a situação é diferente, apesar de ter havido uma melhoria substancial na oferta e acessibilidade cultural. Mas a essência está lá.
Somos generosos e superlativos, mas também demasiadamente conformistas. Ainda estamos muito subalternos ao srº abade. Talvez efeitos colaterais do cónego. Sempre gostei das nossas Igrejas. Apesar de ser vizinho da Matriz, a nova acolhe a minha preferência. Mas fiquei chocado com o que fizeram com a Nova. Aqueles frescos pseudo-renascentistas… Na Matriz também fizeram asneira com as portadas de vidro. Valha-me Deus. Temos sempre de estragar tudo. Mas em geral, há manifestamente melhor gosto e mais cuidado.
Repeitamos o Sº Abade mas continuamos a abusar do «filho da puta». Certo dia fui ao supermercado com a minha filha ainda pequena. Estávamos junto aos legumes e uma senhora apontando para a alface disse «esta filha da puta está com má cara». A partir daí, sempre que eu colocava alface no prato da minha filha, ela afirmava que não queria «filha da puta». Por vezes é catártico, mas abusamos no viés linguístico.
Mas Fafe continua a ser uma cidade desconhecida para a grande maioria das pessoas. Os eventos que acontecem ficam-se pelo microcosmos do norte. Abaixo do Mondego não chega a mensagem da vitela, nem do rali e muito menos do ciclismo que ninguém vê. É um problema. Por exemplo, são raras as publicações nacionais onde surja alguma atractividade de Fafe. Uma coisa é a perceção de quem é daí natural, outra a perceção de quem não conhece nem sabe onde fica Fafe. Mas faço o meu papel. Os meus alunos dizem-me sempre quando a desportiva joga no canal 11.
"Finalmente ao nível político, cheira-me a mofo. Tudo com um discurso amorfo, sem rasgos. Sinceramente é uma pena o PSD. Sempre me meteu pena. Constituído por gente válida mas que raramente despontou, quer pela hegemonia do PS, quer pela própria incapacidade da estrutura do partido. É realmente uma pena não haver alternância de poder. Depois tudo anda à volta do PS, das suas questiúnculas, dos seus amores e desamores, dos oportunismos e aproveitamentos. Não gosto. É um ambiente podre que não transmite confiança. Parece tudo confeccionado a lume brando, sempre com os mesmos ingredientes."

JORNALdeFAFE: Há 8 anos os seus artigos apontavam um apoio a Parcídio Summavielle, manteria o apoio?
António Daniel: Não sei avaliar. Nem sei se Parcídio quer mesmo o poder. Espero que não. Certa vez, nos longínquos anos 80, realizou-se a chamada Rampa da Penha. Era uma prova automobilística. Já na altura havia a febre do automobilismo em Fafe. Era uma demonstração de virilidade. Também fui ver a dita Rampa e, à vinda, «apanhei» boleia com o Parcídio numa velha carrinha Peugeot. Bom, ele sempre foi um pouco, digamos, proactivo na condução. Foi bastante frenética a descida da Penha até à estrada nacional 206. Chegando lá, ainda havia Arões e muitas curvas… Creio que perdi uns anos de vida. Cheguei a casa e pensei que, sendo filho único, não devia andar mais no carro do Parcídio. Os anos passaram, e por vezes essa excitação hormonal vivida na juventude pode ser muito bem canalizada aquando da meia idade. Pensei nisso em relação ao Parcídio. Até que… bem até que ele se lembra de promover uma caça ao javali; não havendo javalis em Fafe a única forma de promover a caça é soltar alguns nas serranias para servirem de tiro ao alvo. Ora, isso desgostou-me. É uma actividade pseudo-turística , perfeitamente desenquadrada das nossas paisagens, artificial e marialva. São estes os contextos em que avaliamos o vínculo e a sensibilidade à terra. Fez-me lembrar os anos oitenta e o excesso hormonal.

JORNALdeFAFE: O que mudaria na gestão da cidade?
António Daniel: Apesar do que disse atrás sobre o clima político, Raul Cunha parece-me ser uma pessoa bastante ponderada. É uma mais valia considerável não ser de Fafe. Tem feito projectos interessantes, os equipamentos existentes têm sido razoavelmente utilizados. Contudo, há uma dificuldade enorme na captação de investimento. Há concelhos vizinhos que conseguem mais e melhor. Mas há algo que poderia ser feito. A educação continua a ser um problema. Há tempos fui a Fafe e aproveitei para degustar a vitelinha. No restaurante onde almocei, entrou um casal estrangeiro, creio terem sido refugiados. Foi constrangedor a dificuldade de comunicação do funcionário do restaurante com os clientes. Estes com um inglês perfeitamente compreensível, o funcionário incapaz de transmitir uma qualquer ideia. Está a ver, aqui está uma iniciativa que o poder político podia muito bem levar a cabo. Até mesmo a junta que mais parece uma central de condecorações e de festanças, podia desenvolver uma espécie de centro de explicações ao nível das línguas para pessoas necessitadas ou para profissionais de certos serviços.
Em termos arquitetónicos, Fafe ainda possui espaços que não devem existir no centro de uma cidade. Os terrenos baldios dão uma péssima imagem. Apesar das alterações feitas e concretizadas no Parque da Cidade, a Feira Velha merecia outro enquadramento, assim como a Igreja Matriz e terrenos anexos.
Um outro aspecto onde se poderia investir é a criação de espaços no centro da cidade, com a aquisição de edifícios classificados e sua reconstrução, para implementação e desenvolvimentos de startups, tentando atrair alguns estudantes de Fafe ou que frequentem a Universidade do Minho em Guimarães. Recuperavam-se imóveis classificados, promovia-se um centro urbano mais atraente e incentivava-se o investimento.
Ao nível cultural, muito se tem feito. Aliás, o Pompeu Miguel gosta de Fafe. Isso é sintomático. Foi um dos melhores se não o melhor vereador, apesar de estar a tornar-se muito político, demasiadamente político pela cena conciliadora. A política faz-se de rupturas. Espero que esteja redondamente enganado.

JORNALdeFAFE: Agradecemos a sua colaboração. Pedimos que nos indique uma pessoa para continuar a rúbrica #passaapalavra.
António Daniel: Para a próxima entrevista proponho o nosso conterrâneo Rui Oliveira. Uma pessoa extraordinária, inteligente, que tem feito carreira no ensino universitário. A última vez que o encontrei foi na Costa da Caparica onde reside. Mas estou com ele muitas vezes no éter na net.

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