segunda-feira, 1 de março de 2021

Antiga casa de José Florêncio Soares um caso gritante de abandono


Outrora palácio faustoso, uma das mais importantes e antigas casas de “brasileiro” de torna-viagem da vila dos finais do século XIX, desapossado do seu recheio, chegou aos nossos dias em inquietante estado de conservação. Um caso gritante de abandono. Uma vergonha para uma cidade que “quer ser a terra mais brasileira do país”.

 

O nosso Teatro-Cinema é um dos mais importantes e emblemáticos edifícios históricos da cidade. Exemplarmente recuperado em 2008, aquela bela sala de espectáculos foi devolvida aos fafenses no dia 25 de Abril de 2009.

Frente à exuberante fachada do Teatro existe um outro imóvel histórico, uma casa construída pelo influente “brasileiro” de torna viagem, José Florêncio Soares, em finais do século XIX.

Este magnífico palácio, datado de 1861, foi, durante mais de centúria e meia, residência de uma abastada família fafense.

 

Nos anos 80 do século passado o edifício foi abandonado e, na actualidade, encontra-se bastante degradado.

Pouco antes da reabertura do Teatro-Cinema, o Município mandou colocar uma tela na fachada do imóvel fronteiro para esconder o seu mísero estado de conservação. A referida tela apodreceu e acabou por cair, desmascarando o triste cenário de uma das mais antigas e simbólicas casas “brasileiras” de Fafe, em preocupante estado de conservação.

 

O nosso Teatro-Cinema, desde a sua reabertura, recebeu milhares de pessoas: Audiências de espectáculos e os mais variados eventos.

O teatro é tão bonito! É uma pena aquela antiga casa estar naquele estado!" Ouvi da voz de um forasteiro, oriundo de Lisboa.

Mais que ter “pena”, urge tomar uma atitude, desenvolver esforços para salvar aquele Património Arquitectónico agonizante.

 


Sabemos que a crise económica comprometeu o futuro imediato deste país, contudo, Fafe não pode continuar a perder os seus valores históricos, testemunhos importantes da herança de fafenses que outrora partiram, criando riqueza e regressaram, contribuindo indubitavelmente para o desenvolvimento desta terra.

Fafe tem obrigação de respeitar a memória colectiva dos “brasileiros” de torna-viagem e, a melhor forma de o fazer é conservar e valorizar o seu invulgar património arquitectónico e espólios relacionados.

Se não forem tomadas medidas urgentes e eficazes de protecção, dentro de poucos anos, Fafe perderá, irremediavelmente, o estatuto de “cidade mais brasileira de Portugal”!

 

O historiador Miguel Monteiro, no seu livro “Fafe dos “brasileiros” (1860 – 1930), Perspectiva Histórica e Patrimonial, 2004 (2ª edição), faz uma descrição bem elucidativa da importância histórica deste imóvel:

«José Florêncio Soares, natural de Fafe, nasceu em 4 de Março de 1824 e faleceu em 1 de Abril de 1900. Casou no Brasil com D. Maria Teresa da Costa, natural do Rio de Janeiro, filha de Domingos José da Costa, natural de Oliveira de Azeméis, e D. Senhorinha Jesuína da Silva, natural de Minas Gerais, estado de Minas Cerais, Brasil.

José Florêncio emigrou, em 20/10/1837, para o Brasil com 13 anos de idade.

Foi um dos emigrantes mais bem sucedidos no Brasil, revelando a sua obra perspicácia, espírito cívico e filantrópico invulgar. Antes dos 40 anos constrói esta majestosa casa (1861), participa activamente na fundação da Fábrica do Bugio, da qual veio a ser o único proprietário.

 

Aparece a liderar o grupo de «brasileiros» promotores da construção do Hospital da Misericórdia de Fafe, cópia de outra casa de caridade do Rio de Janeiro, a pedido de seu pai, médico, angariando donativos para a sua construção junto da comunidade de «brasileiros» de Fafe. A iniciativa teve êxito bastante para que rapidamente se desse inicio à construção da benemérita obra, expoente da filantropia dos «torna-viagem» de Fafe. Em 21/3/1863 fez-se a abertura da primeira enfermaria com nove camas e, desse facto, o jornal O Comércio do Porto, dizia em 21/3/1863.

 


Retrato de José Florêncio Soares, primeiro proprietário da casa.

(Reprodução do "Almanach Illustrado de Fafe, 1910)

 

 

“Abre-se quinta-feira em Fafe a parte do Hospital que se acha feita

e com capacidade para receber nove doentes. Este estabelecimento de caridade deve-se aos esforços de alguns cavalheiros de Fafe e muito particularmente ao Sr. José Florêncio, que tem sido incansável em promover os meios para levar a efeito um tão útil como humanitário estabelecimento.

 

[…] Na quinta-feira à noite dá o Sr. Florêncio, distinto Cavalheiro de Fafe, um esplêndido baile. Fazem-se grandes preparativos para esta função, que promete ser sumptuosa. A Casa do Sr. Florêncio é das mais lindas de Fafe e o salão de baile é magnífico».

 

Como presidente da câmara liderou as principais obras dos finais do século XIX, das quais se destaca ainda o Jardim Público. Do entusiasmo com que se dedicou à causa ficaram belos registos na imprensa local, tendo sido tão polémica a sua relação com as forças vivas do concelho, que decidiu mandar esculpir em gesso e de tamanho natural três dos seus opositores, colocando-os na casa de banho da sua casa com os seguintes dizeres: «EMBARGARAM OS MUROS, EMBARGARAM OS PÓRTICOS, EMBARGARAM A CASA, EMBARGARAM TUDO»

 

Sabemos que um destes seus opositores foi Mons. João Monteiro Vieira de Castro e que o facto gerou tal curiosidade na vila que muitas foram as visitas às esculturas. De facto, este aposento terá sido o mais visitado, chegando tal curiosidade até ao século XX.

Distinguiu-se como o principal benfeitor da construção da Igreja Nova de São José, interrompida após a sua morte por muitos anos.

Do seu perfil e carácter ficou testemunho no epitáfio, que mandou gravar: «AQUI JAZ JOSÉ FLORÊNCIO SOARES QUE SEMPRE AMOU A VIDA E O TRABALHO».

 

Esta casa, verdadeiro palácio, mantêm-se quase sem alterações, com um riquíssimo mobiliário da época, onde existia uma harpa e um piano para animar recepções.

 

[…] Neste verdadeiro palácio de rés-do-chão e andar, telhado de quatro águas, salientam-se as grossas paredes de pedra e as esquinas, soleiras e ombreiras, de cantaria. Verdadeiro palácio ou solar urbano, nele ressalta a pompa das janelas e sacadas. Do átrio, em pedra lavrada, sai a escadaria em madeira exótica, que se desdobra em dois lanços, ocupando o centro do edifício. No rés-do-chão situam-se os escritórios e dependências de serviço e no andar, sobre a frente, um majestoso salão para recepções. O edifício é rebocado a branco, destacando-se no interior as madeiras preciosas, os estuques e os delicados móveis e porcelanas».

 

Foi assim que Miguel Monteiro viu o palácio de José Florêncio Soares, há cerca de três décadas… E agora?!

 

 

 

 


 

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